JORNADAS TEOLÓGICAS
“UMA CELEBRAÇÃO SINFÓNICA: LITURGIA E INCULTURAÇÃO”
Universidade Católica: 20 a 22 de Fevereiro de 2013
1.INTRODUÇÃO
Num dos dias que dediquei a preparar este tema, a Liturgia da Igreja propunha-nos a Leitura de Neemias, 8,2 e seguintes. É a passagem que descreve a grande celebração da leitura do “Livro da Lei”, que ocorreu desde manhã até à noite, em cima dum estrado, mandado levantar para a ocasião, diante duma grande Assembleia que era capaz de compreender e que chorava ao ouvir as palavras da Lei. Durante esta celebração, todo o povo bendizia o Senhor, inclinava-se, prostrava-se por terra e clamava: Ámen! Ámen! Finalmente fez-se um insistente convite à festa, a um bom jantar que incluísse vinho doce e à partilha para que todos pudessem participar da alegria desse dia grande.
É uma descrição lindíssima do que pode ser uma verdadeira celebração.
2. TEMA
2.1. “Uma celebração sinfónica – Liturgia e inculturação” foi o título que me foi dado. Perguntei a algumas pessoas o que lhes sugeria este título, e as respostas espontâneas foram: harmonia, musicalidade, celebração grandiosa e bela, batuques, festa, culturas….Acho as respostas interessantes e muito acertadas.
Pela minha parte, quando ouço a palavra ’inculturação’, talvez por pertencer a uma Congregação com um carisma ad gentes, vem-me à mente, algo a ter-se em conta, sobretudo, nos países chamados, de missão. Sei que devo corrigir esta tendência porque, em qualquer lugar, a Liturgia deve ser inculturada. Porém, encontro facilmente uma saída que facilita essa correção e é o princípio seguinte: a Liturgia tem que se inspirar e celebrar a vida concreta das pessoas que estão a participar na celebração. De outra maneira não há celebração, uma vez que não se propicia o “encontro”, que é o objetivo último da mesma. Ter sempre este princípio em conta, além do mais, pelo menos para mim, facilita imenso a preparação e animação de qualquer celebração, pois a vida é sempre inspiradora.
2.2. Esta partilha, baseia-se, sobretudo, na experiência e deixo de lado, de modo consciente, os manuais e normas litúrgicas, apesar da sua importância.
Confesso que aceitei fazer esta partilha, como uma forma de agradecer a Deus as muitas e ótimas oportunidades que me tem concedido, em participar em celebrações que considero verdadeiramente inculturadas e inspiradoras. Sem estas vivências o meu conhecimento de Deus, a minha visão da Fé e da vida seriam muito diferentes.
Muito, mas mesmo muito, tenho que agradecer à África o despertar do interesse que tenho por este tema. Estou convencida que os africanos têm, neste campo, uma riqueza a partilhar com a Igreja e, para mim, é uma missão a que a África é chamada. Devo, também, este interesse a uma Paróquia de Madrid, onde durante cinco anos participei. Sou, ainda, grande devedora ao Fr. Augusto Mourão, Dominicano, que já partiu, devido à beleza do canto, da poesia, das imagens e símbolos, que davam singularidade, e profundidade às celebrações. Não posso deixar de mencionar, também, as liturgias dos Capítulos e Assembleias Gerais da minha Congregação, marcadas pelo cunho da universalidade, da inter e multiculturalidade que despertam e tornam palpável a fraternidade universal, reafirmam que Deus é o Pai de todos e confirmam que Deus está presente em todas as culturas, mesmo antes da Igreja chegar, como afirma o Concílio Vaticano II.
3. “MARCAS” (ALGUMAS) DA CELEBRAÇÃO INCULTURADA.
3.1. É preparação
Não tenho dúvida que a preparação é um dos pilares fundamentais duma verdadeira celebração. A pessoa, ou pessoas, que a preparam devem penetrar e viver os conteúdos que se querem celebrar, de modo a que os participantes, sintam essa vivência. Deve, conhecer, ainda, quanto seja possível, a realidade das pessoas que vão participar.
Além desta preparação, mais interior, há muitos outros aspetos a ter em conta, -e não são secundários – como a ambientação, a música, os símbolos, as leituras, a homilia, etc. Quando se chega a uma celebração e se sente que foi preparada, a motivação dos participantes, começa a “mexer”… Preparar bem uma celebração resulta numa verdadeira missão evangelizadora…O Padre Luís Rocha e Mello, SJ., que Deus chamou, dizia que o momento principal, duma celebração, dum retiro, era o momento da sua preparação, pois é como a sua rampa de lançamento e dedicava a este primeiro passo muito tempo e convicção.
3.2. É participação e partilha
Se a celebração é, sobretudo, celebração da vida das pessoas, como pode acontecer que estas entrem e saiam sem serem chamadas a participar? Dir-se-á: Participam, respondendo às fórmulas, cantando, sentando-se, levantando-se… Isso será suficiente? Há dias, numa reunião de Pais de preparação para o batismo, alguém dizia: “nesse dia, a festa da Igreja não é muito grande, mas nós, depois, temos que fazer uma grande festança…”. Questiona, não?
Dir-se-á, ainda: mas como fazer em Igrejas tão grandes e com tanta gente? A minha experiência diz-me que é possível: num bairro muito pobre de Quelimane, participei em várias celebrações – sem Padre – onde estas começavam pela partilha do que tinha sido a vida da semana, em cada Bairro, em cada ministério que a Comunidade tinha instituído, etc… Participei em Celebrações em que as pessoas que estavam pela primeira vez, lhes era dada a oportunidade de se apresentar; em que no fim das leituras, a Assembleia- que não era pequena – se dividia em grupos, para refletir a Palavra escutada e regressava à Celebração para a partilha. Já nem refiro a participação de todos nos ofertórios intermináveis, nas danças, sobretudo no momento de ação graças, etc…Na referida paróquia de Madrid, o Presidente da Celebração dizia-nos muitas vezes: “quem não partilha a Palavra, dando-a a comungar aos outros”, não tem direito a comungar a Eucaristia…”
Na leitura de Neemias referida no início, há dois aspetos, que gostava de mencionar. Diz-se: “o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei”. É interessante este registo, porque nos ajuda a refletir sobre o lugar que damos, nas nossas celebrações, à expressão dos sentimentos das pessoas, sobretudo nalguns contextos e momentos. A outra dimensão baseia-se na frase: “as pessoas inclinavam-se e prostravam-se por terra”. Gosto de o salientar porque vejo a expressão corporal como um elemento importante numa celebração e, também, como Dominicana que sou, quero recordar as tradicionais “Nove Maneiras de rezar”, de S. Domingos, às quais o Papa Bento XVI, se referiu, pelo menos duas vezes.
3.3. Doméstica (o mais possível)
As nossas Igrejas estão cada vez mais vazias, ou cheias, quase só, com pessoas de idade. Esta realidade merece, sem dúvida, a nossa atenção e preocupação e penso que não será muito difícil descobrir algumas causas. Descobrindo as causas, poderá ser mais fácil descobrir, também, alguma saída. Uma delas penso que poderia passar por se apostar mais nas celebrações domésticas da Eucaristia e não só. Tenho essa experiência nos Bairros onde vivo, porque temos a sorte do Sr. Padre Nóbrega, Vicentino, – digo o seu nome para lhe prestar a nossa gratidão – se disponibilizar umas três vezes ao ano, vindo de longe, para celebrar a Eucaristia em diferentes casas. Além de se disponibilizar, ele tem um jeito muito especial para este tipo de celebrações, que são, em geral, um verdadeiro êxito e remontam-nos para os primeiros tempos da Igreja.
Jacinto Jardim, Professor de Ciências da Educação e autor do Livro “ 10 Competências Rumo à Felicidade”, afirma que a palavra crise – e não há dúvida que a Igreja também a vive – encerra em si uma pista para a solução da mesma: se à palavra CRI(S)E retirarmos o “s”, fica a palavra “CRIE” do verbo “criar”. Não podemos ter medo de inovar, de criar, pois um dos maiores atributos de Deus é ser o CRIADOR! Na Nova Evangelização é algo a ter-se em conta pois, a criatividade é hoje muito valorizada.
3.4. É solidária
S. Paulo dizia: “alegro-me com os que se alegram e choro com os que choram” Rom.12.15. Grande lema para se viver uma celebração inculturada. Em momentos de felicidade e, sobretudo, em momentos de dor, as pessoas estão psicológica e afetivamente mais disponíveis – porque mais sensíveis- para receberem a mensagem, e penso que nós, Igreja, aproveitamos, em geral, pouco estas oportunidades. Quem participa, por ex., com frequência, em funerais, muitas vezes vem de lá com o coração triste pela oportunidade desperdiçada. Contudo, há, também, bons exemplos e refiro um que ocorreu na referida Paróquia de Madrid. Estando eu lá, el Ayuntamento mandou construir o Tanatório da cidade, num espaço que pertencia a essa Paróquia. A população vizinha dessa zona reagiu muito mal, mas a Equipa paroquial achou que isso era uma excelente oportunidade de missão e planificou-a com dedicação. Uma vez um familiar de alguém que tinha falecido e cujo corpo estava no Tanatório, pediu ao Sacerdote que celebrasse a Missa. Antes de a celebrar tentou conhecer a vida da pessoa falecida e da família e deu-se conta que esta estava desavinda, não mostrando desejos de fazer as “pazes”. Então, o sacerdote disse-lhes que antes de celebrar a Eucaristia, precisava que todos se reunissem junto do corpo do familiar falecido para conversar. Desta conversa surgiu uma verdadeira celebração penitencial, que os reconciliou a todos.
Ainda nesta linha da solidariedade gostaria de partilhar uma celebração que teve lugar no Centro Social 6 de Maio, preparada e vivida, sobretudo, pelos Jovens a quem, para abreviar, costumamos chamar da “pesada”- infelizmente porque não tiveram as oportunidades que a maioria de nós tivemos! – e que de igrejas e de missas não sabem nada… No Bairro viveu-se um tempo, em que ocorreram muitas desgraças: mortes de jovens,- uns por doenças e outros por razões violentas -, muitas rusgas da polícia e até o aparecimento de gatos pretos que, segundo a população, é sinal de maus agouros. A população, sobretudo os Jovens, andava verdadeiramente assustada e veio-nos pedir uma Bênção para o Bairro…o trabalho que se fez a partir deste pedido foi muito interessante e culminou na celebração duma Eucaristia tão especial, que será, certamente, única.
3.5. É bela, criativa, profunda, festiva.
Na introdução do livro um “Deus que dança- itinerários para a oração”, o Padre Tolentino escreve: “Nietzsche deixou escrito que só acreditaria num Deus que dance. Humildemente apetece-me ajuntar: eu também”. O mesmo Sacerdote diz, ainda, numa outra publicação, que Deus tanto nos redime na dor, como na alegria e na festa. Como esquecemos isto!…Pensemos: se o objetivo último duma celebração é o “encontro”, toda a gente quererá é encontra-se com um Deus que é festa, alegria, solução, pois de tristezas e de dores estamos todos cheios…Como é importante que isto se cuide numa celebração, pois só assim podemos experimentar que Deus é Libertação, Amor, Novidade, Surpresa, Acolhimento… Só esta vivência nos pode levar, ao louvor, à contemplação, à adoração, ao saborear o silêncio que Deus é, núcleo fundamental duma celebração. Segundo a visão de S. Paulo – e Teilhard de Chardin, um místico singular, profundamente sintonizado com a ´ressonância do Todo´, descreve-o duma maneira muito bela – a Humanidade inteira caminha para o culminar onde Deus, por meio de Jesus Cristo, será TUDO em todos. Cf. 1ªCor,15,20-28. É para esta celebração final, total, perfeita e indiscritível que todas as nossas celebrações parciais e imperfeitas se encaminham. Apetece trazer aqui a descrição que S. João faz, no trecho do Apocalipse que lemos na Festa de Todos os Santos e que nos conta um pouquinho o que é o Céu e essa celebração final: ‘ …Vi uma imensa multidão, que ninguém podia contar. Vestiam túnicas brancas, tinham palmas nas mãos e clamavam em alta voz: “A salvação ao nosso Deus e ao Cordeiro”. Diante do trono, de rosto por terra, adoravam a Deus dizendo: ”Ámen! A bênção e a glória, a sabedoria e a ação de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Ámen!” ´ Conf. Ap., 7, 2 ss.
Finalmente
3.6. É compromisso
Penso que é muito bom termos, na nossa vida, profundas e marcantes experiências de Tabor, que nos levem a desejar montar tendas, porque nos revelam Deus e animam a vida, sobretudo em momentos difíceis. Não podemos é cair na tentação de as montar, porque essas vivências exigem anúncio, partilha, envio, compromisso…S. João lembra-nos: “Se dizemos que conhecemos a Deus e não amamos os Irmãos, não só de palavras, mas de verdade” 1ª Jo. 4,20…Lembremos, ainda, um dos últimos pedidos de Jesus, na primeira e mais significativa das celebrações da Eucaristia: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” Jo.13,34; ou “Fazei isto em memória de Mim” Lc.22,19.
Razão tinha aquela criança que, ao perguntarem-lhe o que era a Missão, ela respondeu: “ é uma Missa muito grande”. Da Missa saímos, sempre com uma Missão muito grande para realizar. Recordo-me, por exemplo, que o apelo que nos era feito, na linha do compromisso, em quase todas as celebrações, da referida Igreja de Madrid, era de tal maneira exigente, que eu tive muitas vezes a tentação de dizer para mim mesma: “Deolinda, descansa um pouco e no próximo domingo não venhas cá à Missa…Penso que não caí nessa tentação, porque depois ficava mal comigo…
Dentro do compromisso há um setor que tem que ter, sem qualquer dúvida, a nossa preferência. É o setor dos Pobres, dos humildes, dos famintos, dos oprimidos. É que, quer gostemos, quer não, Deus tem nitidamente essa preferência. Se percorrermos a Bíblia da primeira à última página, isso é por demais evidente… Lembremos, por exemplo, a Missão/Programa de Jesus, manifestado na Sinagoga de Nazaré, em Lc. 4, 18-22 ou uma boa parte do Magnificat de Maria: Lc.1,52-53
Há um Padre jovem e Pároco duma paróquia próxima deste local, que celebra na nossa comunidade uma vez por mês e, muitas vezes, antes de começar a Missa, vai à janela da capela, abre-a e nuns segundos de silêncio, contempla a degradação do Bairro, onde a nossa casa se insere. Diz-nos que isso lhe faz muito bem e a verdade é que a nós também.…
Antes de terminar gostava de recordar que MARIA, em cujo seio o Verbo de Deus encarnou, é a melhor inspiradora duma celebração inculturada, uma vez que a Encarnação de Jesus é o fundamento e a exigência da inculturação.
Posso, antes de terminar, fazer uma proposta? Seria interessante que se promovesse um Encontro em que se partilhassem vivências, experiências e práticas de celebrações em que a inculturação é cuidada e valorizada. Poderia resultar num levantamento interessante e motivador.
Muito Obrigado.…
Irmã Deolinda Rodrigues
Missionária Dominicana do Rosário