Espiritualidade Dominicana em Portugal no Século XX

Março 2, 2021

(Esta minha partilha é, sobretudo e simplesmente, um testemunho pessoal e, por isso mesmo, não me preocupei, melhor, não quis, fazer qualquer pesquisa. Outros o farão. Poderá não servir muito para escrever o artigo que se pretende, mas se conseguir dar alguma achega, fico feliz. Dada a oportunidade que me foi dada, preferi reflectir e sintetizar o que tem significado para mim, este tema que me é tão querido).

 

O MEU PRIMEIRO CONTACTO

O meu primeiro contacto, aconteceu quando tinha 16 anos, no ano 1960, e foi com as Missionárias Dominicanas do Rosário. Vinha duma experiência muito próxima, longa e forte com uma outra Congregação Religiosa feminina e quando cheguei junto das Missionárias Dominicanas, de imediato me chamou a atenção a proximidade, a liberdade, abertura e simplicidade destas Irmãs.

Segundo fui conhecendo S. Domingos e o seu Carisma, compreendi a razão dessa minha primeira e tão positiva experiência. Na verdade o que mais aprecio em Domingos e na Família que ele fundou é o seu sentido e experiência de liberdade, de saber ir ao essencial, ao profundo…a sua visão de Deus, da Igreja, do mundo e o seu estilo de viver o Evangelho…a intuição de Domingos que o fez compreender o valor da busca da Verdade, pelo estudo, a descobrir que o lugar das suas comunidades é no meio d vida que brota – cidades -, nas fronteiras…a descoberta do valor da democracia e o genuíno da organização e legislação que quis para a sua Ordem…Domingos foi, na verdade, um génio.

 

A MINHA SEGUNDA E MAIS MACANTE EXPERIÊNCIA:

Sendo ainda uma Irmã muito jovem, pelo ano 1965, tive a grande sorte de participar no Curso de Teologia de Verão, em Fátima, da iniciativa e acção dos Dominicanos. Nesse ano teria sido a minha primeira participação nesses cursos, mas nos anos seguintes, até que eles duraram, só não participava se não pudesse.

Tudo para mim era novidade e uma novidade com um enorme sabor a alegria, a festa, a família, a descoberta. Uma Equipa excelente de Professores jovens, muito bem preparados, quase todos Dominicanos; o horizonte e perspectivas livres, abertas, inovadoras, ecuménicas do conteúdo das aulas, das celebrações, dos convívios. A oração das completas e o cântico da Salvé e do Oh Lumen, participado e cantado por um coro enorme, sendo a maioria Frades Jovens, era algo que não perdíamos.

É de salientar a enorme influência que estes Cursos de Teologia de Verão, tiveram na vida da Igreja de Portugal, na Vida Consagrada, pois durante muitos anos, a maioria dos seus participantes, eram Religiosas e alguns Religiosos. Com o andar dos anos, o número de leigos que neles participavam foi aumentando e chegaram a ser a maioria..

Estes Cursos foram, sem dúvida, uma enorme janela aberta que recebia os novos ventos, ideias e orientações que surgiam do Concílio Vaticano II e dos muitos Teólogos que, por essa Europa fora, foram, em grande parte, os impulsionadores do mesmo. O ter sido aluna destes cursos foi para mim, e penso que para todos os participantes, uma verdadeira iniciação, aplicação e vivência das orientações e decisões conciliares.

Também a nível da política nacional, a influência destes cursos, a pregação, escritos e a tomada de posição de vários Frades Dominicanos, foram decisivos para o cair da ditadura, que ocorreu no dia 25 de Abril de 1974. Para o confirmar basta recordar que até esta data, a presença dum membro da PIDE, era quase constante, onde se realizassem cursos, celebrações, pregações, ou… que fossem da iniciativa dos – especialmente alguns – Dominicanos. Recorde-se, ainda, a fuga do País que algum dos Frades teve que viver.

 

A EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIA DOMINICANA

Uma das melhores e mais fecundas inspirações, de alguns Mestres Gerais da Ordem, nos tempos pós conciliares, foi a criação da realidade denominada FAMILIA DOMINICANA, o que contribuiu, de modo único, para incrementar e reforçar o espírito dominicano, promovendo o conhecimento dos diferentes Ramos existentes em Portugal, o sentido de comunhão, entreajuda, amizade, trabalho conjunto…Nasceu, sem dúvida, um verdadeiro espírito de Família, à qual sempre se juntaram amigos, familiares, estudiosos e curiosos. Os meios para isto foram:

 

1.Constituição e Organização:

1.1. Elaboração dos Estatutos

1.2. Resultante dessa estruturação surgiram as reuniões e encontros periódicos, rotatividade e partilha de responsabilidades, ações conjuntas, etc., das quais se destacam:

1.2.1. Pastoral Juvenil e Vocacional conjunta feita em Família Dominicana

Foi uma atividade, com altos e baixos, mas que chegou e envolveu muitas centenas, senão milhares, de jovens e não só, sendo, por isso, uma excelente oportunidade de dar a conhecer e de se celebrar o Carisma de Domingos

1.2.2.Estudo

Muitos foram e são os temas e tempos de estudo planificados e concretizados em Família Dominicana desde Conferências, Jornadas, publicações, etc.

1.2.3.Celebrações

As principais Festas, Jubileus, Acontecimentos da Ordem e de cada um dos Ramos, são celebradas em Família Dominicana o que é, sem dúvida, uma grande maisvalia e tem mais projeção para o exterior

1.2.4.Convívio

Também os diferentes tipos e momentos de convívio, de modo muito especial os Passeios a diferentes lugares históricos dominicanos, ajudaram e ajudam muitíssimo a conhecer, a ressaltar e a reviver o Carisma dominicano, não só a nível de Família OP, mas envolvendo, quase sempre, os poderes, os historiadores e as populações locais.

Neste contexto de Família Dominicana, será importante, penso, deixar o registo dos diversos Ramos que no século XX, contribuíram para o fazer da História dominicana em Portugal.

Começando pelos Frades, viram o restaurar da sua Província, após ter sido destruída pela expulsão de Portugal das Ordens e Congregações Religiosas, o que ocorreu mais do que uma vez, ao longo da História, mas ultimamente repetida no sec. XX, por altura da instauração da República, em 1910.

Esta Restauração fez-se com a ajuda de Frades vindos do Canadá, que deixaram, sem dúvida, marcas muito dominicanas.

No que toca a Mosteiros, referem-se o de Campanhã, – Porto -, Pio XII, – Fátima – este muito dedicado à devoção do Rosário – e o do Bom Sucesso, Lisboa, e que existia em Portugal há alguns séculos. Este, porém, em meados do século XX, ao unir-se a uma Congregação Dominicana de vida ativa da Irlanda, passou a ter outras características.

No que toca a Congregações femininas, referem-se as Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, de origem portuguesa, nascida por altura da implantação da República, por uma pessoa da nobreza, as Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário, nascida no Peru, em 1918, por um Bispo e Irmã, ambos dominicanos e espanhóis e veio para Portugal, por altura da guerra de Espanha. Finalmente as Irmãs Missionárias de S. Domingos, Congregação muito ligada à Província do Oriente dos Frades.

Há que ressaltar e muito as Fraternidades Leigas, espalhadas um pouco por todo o País, graças ao esforço dos Frades, sobretudo, graças ao empenho do Fr. Estêvão, que as visitava e animava continuamente. Foi a partir destas Fraternidades que surgiu o Jornal Laicado Dominicano, que celebrou em 2020 os 50 anos. Destas Fraternidades têm surgido vários Leigos, que muito tem dado à Família Dominicana a nível nacional, e não só.

Por altura do surgir da Família Dominicana, nasceram novos Grupos de Leigos, com características distintas das Fraternidades Leigas, mas reconhecidas oficialmente, assim como o Movimento Juvenil Dominicano, que teve tempos de maior e menor expressão

 

O MOSTEIRO DE SANTA MARIA

Na sequência do espírito de renovação que nos veio do Concílio Vaticano II, surgiu, entre algumas Monjas Dominicanas de clausura, apoiadas e orientadas por alguns Frades, a ideia e o propósito de se fundar uma Comunidade de Monjas contemplativas, que vivesse em verdadeiro espírito contemplativo, mas abertas ao mundo. Iniciou-se este Projeto no Porto, mas ao mudarem-se para lisboa, foi aqui que o mesmo alcançou o seu verdadeiro significado e referência.

Esta comunidade, inserida em plena cidade, mas ocupando um espaço amplo e verde, chamava e ajudava ao recolhimento, ao silêncio, à oração, ao estudo, ao descanso.

Ao longo dos anos, nos segundos sábados do mês, muitas, muitas foram as Conferências, de alto nível, seguidas de debates que ali tiveram lugar. Com frequência, o espaço resultava pequeno para acolher o número de pessoas que acorria. Viveram-se aí, ainda, verdadeiras experiências de unidade entre diferentes Igrejas cristãs e, talvez, de diálogo inter-religioso. O delicioso lanche que se lhe seguia, contribuía e muito para dar continuidade ao debate, ao reencontro de amigos, ao convívio.

Não menos conhecidas e faladas eram as Celebrações da Eucaristia, no fim das Conferências, mas, sobretudo, o Tríduo Pascal. Eram verdadeiramente únicas, pela preparação, beleza, cânticos, pregação, pelo contexto e espaço, pelo estilo de quem presidia, de quem participava…

Foram, ainda, inumeráveis, os Grupos, Comunidades Religiosas, Turmas de Colégios, Movimentos eclesiais, que recorriam aquele espaço e lugar, para as suas reflexões, retiros, planificações, avaliações, convívios. Esta Comunidade foi, sem dúvida, um verdadeiro DOM.

 

 A MISSÃO E A OPÇÃO PELOS MAIS POBRES

Uma outra “marca” da espiritualidade dominicana a reter, é sem dúvida, a opção pelos mais pobres, que se concretizou de muitos modos. Exemplo: Obra do Fr. Gil, para crianças de Rua?, Instituições que acolhiam Jovens em risco, mas, talvez, mereça destaque a inserção duma Comunidade das Missionárias Dominicanas do Rosário, num dos Bairros periféricos, clandestinos, carenciados e mal vistos, de Lisboa, habitado por pessoas e famílias provenientes de vários Países de África.

Quanto à Missão, além do trabalho em Paróquias, Universidades, Colégios, Centros de Reflexão Cristã, etc., muitas vezes reconhecido, é de destacar o grande número de dominicanas e dominicanos que, de Portugal, partiram como Missionários, sobretudo, para as Missões de Angola, Moçambique, Timor, permitindo, com o surgir das vocações locais, que aí se criassem novas Províncias e Vicariatos..

 

A PREGAÇÃO E O ROSÁRIO

Por todo o País surgiram pessoas, grupos, associações, confrarias, ligadas à devoção do Rosário (- ”Rosaristas”…”Rosário Perpétuo”-), graças à pregação intensa, incansável e fervorosa , sobretudo dos Frades, destacando-se o Fr. Luís Cerdeira.

Confesso que quando participei pela primeira vez, já há anos, na Peregrinação nacional e anual do Rosário, em Fátima, fiquei muito feliz pela enorme surpresa que foi para mim, ver tantos, tantos grupos ligados ao Rosário, empunhando estandartes e bandeiras com imagens totalmente dominicanas como a entrega do Rosário, por Maria, a S. Domingos e a Santa Catarina de Sena.

A Revista “ Rosário de Maria”, com uma linguagem e apresentação acessíveis, tem o dom de ser lida por muita gente, sobretudo gente simples do povo.

O Retiro anual e nacional, para Rosaristas, que se organiza em Fátima, e os Retiros que se organizam em muitas zonas do País, ao longo do ano, são, sem dúvida, “marcas” fortes da espiritualidade ligada ao Rosário, e consequentemente, dominicana.

 

  1. BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES

 

Também neste século os Dominicanos decidiram dar a conhecer, o Fr. Bartolomeu dos Mártires, um Dominicano, nascido em Lisboa, e que foi uma pessoa que marcou muito, no seu tempo, a vida Dominicana, o País, o Concílio de Trento e foi, ainda, um verdadeiro exemplo, ainda hoje actual, de Bispo e de pastor. O objectivo era a sua canonização – que veio a acontecer já neste séc. XXI – e os Fr. Raul Rolo e o Fr. António do Rosário, foram, penso, quem mais se empenharam nesta causa.

 

HISTÓRIA, NOMES E OBRAS QUE MARCARAM:

Além dos bons Historiadores dominicanos que viveram no século em referência, é muito gratificante ver e sentir, como em encontros, celebrações de determinadas efemérides e/ou acontecimento, da Ordem ou da Província, surgem sempre outros especialistas leigos, nas mais diversas áreas, que preparam e apresentam com gosto, qualidade e sabedoria, os temas que lhe são pedidos. Para mim isso explica-se pelo “peso” histórico, importante, abundante e decisivo, que Ordem Dominicana deixou bem impressa, ao longo dos séculos, na vida do País.

Outra área em que os Dominicanos, no sé. XX, abriram caminhos e deixaram uma pegada muito forte do seu estilo, da sua visão e espiritualidade, foi na arquitectura, com a construção inovadora da Igreja do Convento de Fátima e da Aldeia Nova, que originou os maiores debates e controvérsias, entre arquitectos, a nível eclesial e entre o povo… Também a mais recente construção do Convento de S. Domingos, em Lisboa, mereceu e merece, ainda, visitas e debates muito interessantes

Falando e evocando agora alguns nomes, é com muita alegria que evoco o Fr. Mateus Pérez OP, insigne e, para mim, único, professor de Moral. Além da sua facilidade, elegância e fino sentido de humor, com que comunicava e pregava, era um homem de fé profunda e duma liberdade interior invejável. Tratava os assuntos com uma delicadeza e um respeito enorme, além da verdade, profundidade e coerência que procurava dar-lhes.

Fr. Augusto Mourão OP, o Poeta, o Músico, o Místico que marcou de beleza a literatura, a música e, sobretudo, a liturgia, além de ter uma enorme capacidade de convidar amigos, colegas da universidade e outros para interessantes debates e reflexões.

O Fr. João Domingos OP, pela sua capacidade amena e agradável de unir, de aconselhar…Pela enorme acção a favor da vida Consagrada, tendo um papel preponderante de união entre as “pequenas comunidades” de inserção, que foram surgindo após o Vaticano II e sendo muitas vezes convidado a pregar às mais diversas Congregações Religiosas. Foi, ainda, um dos Fundadores do Vicariato de Angola, em tempos muito difíceis, onde a sua pessoa, pregação, acção e obra foi muito valorizada e respeitada, mesmo pelos governantes, que tinham ideias contrárias.

Fr. Luís França, OP, um especialista na área da eclesiologia e de grande compromisso na área da Justiça, Paz e Desenvolvimento dos Povos

Fr. Francolino Gonçalves grande investigador e professor de Bíblia, que fez parte da Comissão Bíblica do Vaticano e foi considerado um dos maiores biblistas dos nossos dias. Apesar de viver e trabalhar, praticamente sempre, na Escola Bíblica de Jerusalém, era um conceituado professor na Faculdade de letras de Lisboa.

O Fr. Bento Domingues OP, pela sua capacidade enorme, única e original de provocar o debate, o estudo, a busca da verdade e pela sua participação semanal de há muitos anos, num dos Jornais mais conhecidos a nível nacional, que é lido por imensa gente, sobretudo intelectuais, mas não só, crentes e não crentes.

A irmã Assunta, das Irmãs Dominicanas de santa Catarina, pela seu papel importante no surgir da Família Dominicana.

Irmã Maria Deolinda de Jesus Rodrigues
Missionária Dominicana do Rosário