Desafios que a interculturalidade e intergeracionalidade colocam à Vida Religiosa

Fevereiro 13, 2024

Encontro Nacional da Vida Consagrada, Fátima, 10 a 13 de Fevereiro

1. Como é natural, inicio esta pequena partilha com referência a duas passagens bíblicas. Haveria muitas outras à escolha.

A primeira é Lc 6, 12-15 que nos diz: “ Naqueles dias, Jesus foi para o monte fazer oração e passou a noite a orar a Deus. Quando nasceu o dia, convocou os discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de Apóstolos: 14*Simão, a quem chamou Pedro, e André, seu irmão; Tiago, João, Filipe e Bartolomeu; 15*Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado o Zelote; 16*Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que veio a ser o traidor.

Conhecendo nós alguns dos rasgos destes escolhidos por Jesus, depois de uma noite de oração, é muito fácil vermos as diferenças, em muitos aspectos, incluindo a idade, que havia entre eles. Assim é a realidade das nossas Comunidades!

Em Rom 12, 6-8, diz-nos que Deus a uns dá os Seus Dons, conforme lhe apraz: “Temos dons que, consoante a graça que nos foi dada, são diferentes: se é o da profecia, que seja usado em sintonia com a fé; 7se é o do serviço, que seja usado a servir; se um tem o dom  de ensinar, que o use no ensino; 8se outro tem o de exortar, que o use na exortação; quem reparte, faça-o com generosidade; quem preside, faça-o com dedicação; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria.

2. Experiências

O meu gosto pelo Tema da interculturalidade fundamenta-se em várias experiências e vivências das quais destaco 3:

2.1. As minhas idas a alguns Países de Africa, dos quais destaco:

-O meu “baptismo” na cultura africana aconteceu no Congo e foi algo que não posso esquecer. Do aeroporto fui direta para uma enorme Igreja de Kinshasa, onde decorria uma Celebração de Batismos e Primeiras Comunhões e fiquei deslumbrada: a multidão era imensa, as danças, – destas recordo, pela sua beleza, sobretudo as que faziam em volta do altar, em determinados momentos da Celebração – a alegria, as palmas, a participação, as vestes e penteados festivos das pessoas, as longas horas que durou, mas sem cansar…Enfim, algo que nunca tinha visto e que me deixou de boca aberta

-Das várias idas a vários Países de África, mas de modo especial Moçambique, que além dos muitos aspectos semelhantes aos que descrevo no parágrafo anterior, não posso esquecer os seguintes: a organização e vivência das Comunidades Cristãs, em que o Sacerdote ia muito raramente, onde a vivência dos diferentes Carismas e Ministérios era algo admirável. Os Animadores e Responsáveis de cada um deles eram eleitos pelos Cristãos para um determinado período e todos os aspectos e áreas possíveis da vida duma Comunidade estavam abrangidos. Quando alguém de fora ia pela primeira vez à Celebração apresentava-se, de modo a não haver ninguém desconhecido e/ou não acolhido. A gratidão do Povo era algo que também me sensibilizava

-Estas experiências, são apenas exemplos do que encontrei e admirei nalguns Países de África por onde passei, e ainda hoje me levam a perguntar porque é que isto não é possível em Portugal?  Compreendi que o Povo africano, tem uma grande missão na Igreja e no mundo: ser animadores da alegria, do sentido de festa, da resiliência. Afirma o Fr. Timothy Radcliife OP, que “ precisamos dos nossos irmãos africanos, para nos ensinarem como dançar o louvor de Deus”

2.2. A minha vivência no Bairro 6 de Maio que serve e atende uma população proveniente, ao princípio, de África, mas agora de muitos Países, cada vez mais variados.

Vivi, no dia a dia, com a população dos Bairros das Fontainhas, 6 de Maio e Estrela d´África, muitas das suas tradições, mas destaco dois momentos especialmente festivos, onde a interculturalidade e até a intergeracionalidade eram marcantes: A Festa do Padroeiro, que nas nasceu nos Bairros e a Festa Crioula, que ainda continua e que é organizada pela Capelania Africana. É algo que não gosto de perder

2.3. A participação em algumas, poucas, Assembleias Mundiais da Família Dominicana, mas sobretudo a participação nalguns Capítulos Gerais da minha Congregação, onde participam Irmãs de bastantes Países. Nestes Encontros as Celebrações Litúrgicas, mas também os momentos de convívio, são sempre preparados por Irmãs de cada Continente, ou de diferentes Países e é, sem dúvida, uma riqueza e uma alegria.

2.4. Relativamente à intergeracionalidade comunitária, penso não ter vivências muito marcantes, a não ser a aprendizagem da convivência do dia a dia, que é, sem dúvida, muito importante. Esta aprendizagem, porém, é de algum modo limitada, porque quase sempre vivi com Irmãs, sem grandes diferenças etárias

3.Constatações/Verificações:

Todas estas vivências me confirmam na certeza de que Deus gosta, sem dúvida, da variedade, da diferença e da diversidade! Que BOM! Nós, se calhar, um pouco teoricamente, também gostamos, sem dúvida.

Acredito que assim como cada ser humano que Deus cria, o cria singular, único, com identidade própria e lhe dá uma Missão específica, assim acontece, também, com cada povo, com cada cultura. Relativamente à África, já o referimos. Quanto à Ásia, penso ser dotada, por exemplo, com os dons da espiritualidade, da profundidade, da finura de gestos. Quanto ao Continente latino- americano, talvez seja o conceito da igualdade, da fraternidade, do sentido de justiça. Não foi por acaso que aí surgiu o conceito e a Teologia da libertação.

Também se fizermos a mesma análise a nível do nosso País, vemos as diferenças entre o povo do Minho e do Alentejo, entre o da cidade e aldeia!

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Árvore intergeracional

Quanto à intergeracionalidade, os meus já muitos anos ensinam-me que as diferentes etapas da vida acabam por ser, também, um dom de Deus, pois os conceitos e as vivências que temos de Deus, da vida, da realidade, mudam muito. Para mim foi e é, de algum modo, uma descoberta. Cada faixa etária amadurece-nos, sem dúvida. Uma pessoa que morre mais nova, não tem a sorte de o experienciar. Uma Comunidade multicultural e intergeracional, pode contar  com o entusiasmo, e o sonho dos jovens, com a maturidade, conhecimento da realidade, o compromisso e trabalho dos de meia idade e, também, com a serenidade, a maior proximidade de Deus e o sentido de aconselhamento dos mais idosos. Penso, ainda que os idosos e doentes ainda têm, de algum modo, a missão importante que é despertar e até exigir o cuidado e a caridade fraterna da comunidade

Penso que não foi por acaso que na Festa da Apresentação de Jesus e do Consagrado, que celebramos no dia 2 deste mês, o Evangelho nos apresenta as pessoas proféticas, santas e simpáticas de Simeão e de Ana.

Gosto muito de os ver como verdadeiros Patronos das pessoas de idade

A Vida Consagrada, tem um lugar privilegiado na Igreja e no mundo, se a sua vivência, a nível comunitário, sobretudo, for um verdadeiro testemunho e uma imagem do que é e deve ser a FRATERNIDADE UNIVERSAL. Se assim for, a especificidade de cada um dos seus membros, independentemente, ou melhor, incluindo, a idade, os dons de cada um.a, as suas origens culturais, etc., constituiem  um verdadeiro Hino Ao nosso Deus

4. O caminho a percorrer

Recordemos que no fim da Sua Criação, Deus viu tudo o que tinha feito e afirmou que ERA TUDO MUITO BOM. Lembremos, ainda, que durante a 1ª sessão do Sínodo se repetiu muitas vezes, segundo o Relatório/Síntese, a imagem bíblica de “descalçar as sandálias” para se ir ao encontro de Deus e da Sua presença com humildade e respeito.  E lembremos, ainda, que Deus nos deu como referência e como ideal para a  vivência da nossa vida fraterna, nada mais, nada menos, que a própria Santíssima Trindade! Além disso sabemos, também, qual é o Caminho para aí chegarmos, pois o próprio Jesus no-lo disse: “Eu sou o CAMINHO, A VERDADE e a VIDA”.

Ao recordar tudo isto, pode parecer-nos relativamente fácil, constituir e viver em Comunidades bastante perfeitas. Mas, sabemos bem que não é assim. É tão frequente ouvirmos dizer que o mais difícil é sempre a convivência fraterna. Experimentamos no dia-a-dia, as dificuldades, os conflitos e as incompreensões.

Além de nos faltar, com frequência, uma verdadeira relação e intimidade com Deus, falta-nos, também, o verdadeiro espírito sinodal que nos leva a saber caminhar juntos e a saber escutar-nos. Muitas vezes, nas nossas comunidades não levarmos, a sério, as avaliações e as celebrações comunitárias do perdão, em que os aspectos em que estamos a reflectir estejam bem presentes. Também, além de muitos outros aspetos em que nos devemos, verdadeiramente, converter, muitas vezes, confundimos os defeitos e limitações que uma pessoa concreta possa ter, com a sua origem, com a sua cultura e proveniência, ou com a sua idade e isto leva-nos a generalizar e a caracterizar, negativamente, povos, algumas faixas etárias, etc. O racismo e a xenofobia, também, têm muito disto

Dada a realidade concreta que o Mundo e a Vida Consagrada vivem hoje, é bom recordar, ainda, a chamada de atenção que o Papa Francisco dirigiu às Congregações Religiosas, alertando-nos a que tomemos cuidado, para que “não trafiquemos Irmãs e Irmãos”. A enorme falta de vocações que se sente, concretamente, em Portugal, leva com muita frequência a trazer Irmãs e Irmãos de outros Países e, sobretudo, de outros Continentes, o que em princípio é muito bom.

Da Europa, de Portugal, saíram muitos Missionários a evangelizar o Mundo e a promover Povos. Agora é a Europa que precisa de ser evangelizada. Além disso é uma oportunidade excelente para se provar que a convivência da multiculturalidade e das diferentes gerações, é uma verdadeira riqueza e um verdadeiro testemunho. Mas estes aspectos têm que ser o motivo principal da vinda desses novos Irmãs e Irmãs e não os trazer para fazerem, somente, aquilo que nós, pela nossa idade e limitações já não somos capazes. Por outras palavras: não devem vir para serem uma espécie de “criadas, mas para serem Irmãs e irmãos”

Não esqueçamos, também que, com frequência, há Irmãs e Irmãos que pedem para vir, porque a Europa é um sonho…

Agradeço que a organização deste Encontro tenha incluído esta temática, tão oportuna, importante e necessária..

Ir. Deolinda Rodrigues